Rosana Siqueira Bertucci[2]
O princípio da legalidade tem sido fartamente discutido pela doutrina e está consolidado como base da segurança jurídica, em matéria tributária, mas que sugere no âmbito da arbitragem algumas considerações, daí a importância e atualidade desse tema.
Com a possibilidade de ser tratado por vários ângulos, num imenso espectro de seu alcance, foi escolhido seu tratamento a partir da abordagem de dois aspectos que sugerem ser interessantes no estudo desse princípio para fortalecer a discussão da arbitragem em matéria tributária. São eles: a eficácia técnica do princípio da legalidade e o princípio da legalidade diante da segurança jurídica.
Tanto um quanto o outro são tratados no âmbito do princípio da legalidade da arbitragem, estando presente a idéia de que a utilização da arbitragem em matéria tributária não ofende tal princípio.
No que diz respeito à eficácia técnica, a pergunta que se coloca é: o legislador, ao editar uma norma, espera uma aplicação genérica e imediata dessa lei?
Trazendo o conhecimento doutrinário e os estudos a respeito da eficácia da norma, surge a constatação de que a concretização das funções eficaciais da norma está ligada à concretização de três funções; três objetivos.
O primeiro é bloquear comportamentos indesejáveis na ordem jurídica; é a chamada função de bloqueio. Classificada por parte da doutrina como norma de eficácia contida, ou seja, a norma nasce forte, com eficácia para produzir seus efeitos, mas poderá vir a ser restringida para evitar determinado comportamento indesejado.
A segunda função diz respeito à realização de um objetivo, ou seja, uma função de programa. Essa lei não nasce com força suficiente para sua aplicação, ao contrário, ela precisa de outras normas, de outras leis, que propiciem a eficácia desejada pelo legislador. Também chamadas normas de eficácia limitada.
O último objetivo é o de assegurar uma conduta determinada, ou seja, uma função de resguardo, que na classificação de aplicabilidade da norma é completa, de eficácia plena; ela nasce forte o suficiente para ser aplicada de imediato para atender essa conduta determinada.
De toda forma, as normas não apenas cumprem uma dessas funções, mas podendo desempenhar mais de uma função, uma delas tem caráter prevalente, podendo atender as outras, secundariamente. Neste sentido, a pergunta é: Qual a função da norma da arbitragem?
O entendimento é que ela tem uma função eficacial primária de resguardo, ou seja, de assegurar aos contribuintes os direitos que lhe são assegurados na ordem jurídica. Então, é uma norma de eficácia plena, admitindo-se desde já que a arbitragem não fere o princípio da legalidade, desempenha sim uma função eficacial da norma, da lei tributária.
No mesmo sentido pode ser utilizado o exemplo comparativo, no âmbito do Brasil inclusive, do instituto da transação, previsto no Código Tributário Nacional (CTN) que, embora não muito utilizado, apenas por falta de melhor definição legal, critérios e pressupostos, é cada vez mais incorporado à legislação, no sentido de produzir os efeitos desejados da aplicação da norma tributária.
Outro aspecto a ser analisado, diz respeito ao desdobramento da legalidade, ou seja, dentro do princípio da legalidade pode-se desdobrar o princípio em legalidade absoluta e legalidade formal, ou seja, em sentido material ou especificação conceitual, na primeira e na espécie normativa que veicula a regra tributária, na segunda.
Nesta reserva formal, em matéria tributária, o princípio da legalidade há de ser entendido como a necessidade que haja na lei o mínimo de indelegabilidade, isto é, a lei há de trazer todos os aspectos caracterizadores da obrigação tributária, independentemente de regulamentação.
Assim sendo, segundo o ordenamento jurídico do Brasil, diferentemente de outros países em que há regulamentos autorizadores, delegados, independentes ou autônomos, os regulamentos têm um regime jurídico específico, ou seja, prevê o art, 5º, II da Constituição Federal (CF), que a norma, a lei, emane do poder legislativo. A Constituição Federal, pelo art. 84, IV da CF, outorgou a competência para o Chefe do Executivo sancionar, promulgar e publicar leis e expedir regulamentos e decretos para sua fiel execução, ou seja, o constituinte circunscreveu a função do Chefe do Poder Executivo para editar regulamentos para a fiel execução das leis.
Com respaldo ainda no art. 37 da CF, o princípio da legalidade há de ser atendido pela Administração Pública, havendo apenas lugar em matéria tributária e também em arbitragem espaço para os regulamentos chamados pela doutrina estrangeira de executivos, com regulamentação procedimental apenas.
No que diz respeito ao outro aspecto eleito para análise – segurança jurídica, é importante considerar classificação doutrinária que distingue princípios de sobreprincípios, considerando que os princípios podem ser considerados normas jurídicas que levam ao sistema os valores mais importantes da sociedade e da conjugação dos primeiros, se alcançam os segundos.
Por exemplo, a justiça e a certeza do direito, enquanto valores supremos do Estado Democrático, despontam para um sobreprincípio – a segurança jurídica. Assim, da conjugação harmônica de diversos princípios asseguradores de direitos e garantias se confirma a segurança jurídica.
Em matéria tributária a segurança jurídica encima diversos princípios explícitos e implícitos, que formam o Estatuto do Contribuinte, expressão utilizado pelo mestre francês Louis Trotabas, ou Código de Defesa do Contribuinte, como prefere parte da doutrina, na atualidade.
Para se alcançar segurança na utilização da arbitragem em matéria tributária é necessário que a ordem jurídica estabeleça critérios para realização da arbitragem em termos precisos, objetivos e certos.
Constata-se que a teoria é bela, lírica, sedutora e até fascinante quanto à nobreza desse sobreprincípio da segurança jurídica, mas na prática sua efetividade tem demonstrado que o contribuinte sofre sérios prejuízos.
Tantas incertezas e até contradições na legislação conduzem a um manicômio jurídico tributário, na clássica crítica de Alfredo Augusto Becker, ou a uma selva normativa, como tem sido afirmado pela doutrina Argentina. Tal situação decorre da fúria arrecadatória, própria do subdesenvolvimento tributário, que prevalece, principalmente, por quatro fatores básicos, altamente negativos, que acarretam forte insegurança jurídica tributária: leis com cobranças ilegais e inconstitucionais; utilização exacerbada de medidas provisórias; decisões judiciais demoradas; corrupção ativa e passiva.
No primeiro caso, são constantes as leis com cobranças ilegais e inconstitucionais nas várias esferas políticas e que tentam contornar decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), muitas vezes sabidamente dessa condição e ainda assim são editadas, especialmente porque, na verdade, o Executivo pressiona o legislativo para aprovar essas leis e, naturalmente, esse legislativo se curvando diante das pressões acaba aprovando, o que faz gerar mais e mais ações junto ao Judiciário.
Outro fato é que no Brasil, a existência das chamadas medidas provisórias, de inspiração italiana e portuguesa, leva o Chefe do Executivo a editá-las constantemente, inclusive em matéria tributária, e elas têm eficácia de lei, até que venham a ser aprovadas pelo legislativo. Então, neste sentido, essas medidas provisórias acarretam o caráter de surpresa e provisoriedade, o que também prejudica, sobremaneira, a segurança jurídica do próprio contribuinte nas suas relações com o Fisco.
O terceiro aspecto citado diz respeito às decisões judiciais, que como se sabe são muito demoradas. Nas jornadas Latino-Americanas de 2002, dados demonstraram que demoram mais de dez anos no Brasil. Trazendo à colação um autor brasileiro, Rui Barbosa, político, jurista e poeta que ilustra bem o que se quer alcançar; diz ele em Orações aos Moços, que Justiça atrasada não é Justiça, e sim injustiça, qualificada e manifesta. Mas também, além da demora, as decisões judiciais prestigiam, muitas das vezes, princípios menores, em detrimento de outros. Várias manifestações da doutrina têm demonstrado que, em favor da praticidade da arrecadação, por exemplo, se prejudica o princípio da legalidade, e é assim que as decisões, às vezes, se comportam. Fato que culmina com contribuintes vencidos, mas não convencidos.
Ainda em relação às decisões, outro aspecto diz respeito ao fato que elas vêm se modificando e a Jurisprudência tem induzido contribuintes à adoção de comportamentos nela preconizados e, muitas vezes, essas decisões têm sido sucessiva e desmotivadamente renovadas, o que gera também uma grande insegurança.
E não menos importante e, mais ainda, como um dos fatores enfrentado de forma mais intensa e com maior divulgação pelos meios de comunicação, já que têm sido trazidos a conhecimento público constantemente novos casos, é a corrupção ativa e passiva no Sistema.
Foram destacados apenas esses quatro fatores, entre outros, que levam à insegurança jurídica, mas entre eles não está certamente a arbitragem, que é meio válido e eficaz para levar ao cumprimento do princípio da Justiça, sem ofender a legalidade.
A aplicação da lei em sentido geral e abstrato, quando aplicada ao caso individual e concreto, não é um processo mecânico; gera certo grau de incerteza. Nesse sentido, essa situação de incerteza dos fatos; utilização de presunções (muito usadas em matéria tributária e com valor superestimado, como por exemplo a substituição tributária para frente); conceitos jurídicos indeterminados (como valores de mercado, preço de transferências, estimativas), sempre causam dúvidas, em relação à liquidez e certeza da obrigação tributária.
Criar e consolidar a legislação de arbitragem em matéria tributária, que afirme o princípio da legalidade tributária não a ofende, como às vezes, ortodoxamente, se é levado a pensar. É necessário que se rompa, de certa maneira, com uma espécie de hipocrisia tributária, pela sua utilização no cotidiano, ou seja, sua utilização prática, quando do processo de passagem da lei geral e abstrata para a norma individual e concreta, que não é um processo mecânico. Há sim a adoção de certos critérios de natureza subjetiva nesse processo, isto é, uma hipocrisia tributária em não se aceitar a arbitragem como instituto que merece legislação específica e que pode ser utilizada em matéria tributária.
Então, neste sentido, é necessário lei que defina com suficiente precisão os pressupostos e o alcance, ou seja, definição dos critérios de arbitragem para que se possa garantir a segurança jurídica, como mecanismo de solução de conflitos tributários, quando da indefinição dos antecedentes de fato (valoração jurídica incerta) e quando envolver algum grau de subjetividade na precisão dos fatos, e não se venha exatamente a reforçar o processo de insegurança como mecanismo.
Daí a importância da arbitragem, já que ela usa como marco de referência as normas vigentes e não é processo discricionário. Não havendo que se esquecer que historicamente a arbitragem antecedeu a composição publicizada, na composição de conflitos.
No Brasil, há precedentes em matéria tributária apresentando substrato negociador. É o caso das transações e perícias; as vitoriosas experiências nos juizados informais de conciliação. Além desses meios, o Brasil oferece na solução de conflitos tributários, o Processo Administrativo Tributário, não como exigência prévia ao Judiciário, mas como meio alternativo de grande sucesso e muito utilizado como referência pela doutrina internacional.
Pode-se concluir dizendo que a arbitragem não fere o princípio da legalidade, se caracterizando pela simplificação de ritos e tendo como caráter marcante a celeridade e a flexibilidade, como qualidade que militam em favor da legalidade. Como instrumento auxiliar maximiza e afirma o sobreprincípio da segurança jurídica tributária.
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